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segunda-feira, junho 23, 2008

Laicismo ultrapassado e retrógado...

O caminho feito até chegar ao conceito de laicidade andou, sobretudo, à volta do Estado, origem e natureza do poder, relação do Estado com o divino e com a Igreja enquanto realidade sobrenatural e, consequentemente, da relação do Estado com a sociedade, o que levou, espontaneamente, à consideração da relação da fé religiosa com a política.

Hoje sente-se, na nossa sociedade, a tendência dos defensores radicais da laicidade, de estender a toda a sociedade a laicidade do Estado, o que é abusivo e manifestação de laicismo, porque a sociedade não é laica, no seu todo, pois, na sua pluralidade, é o espaço de afirmação, tanto da descrença e do ateísmo, como das diversas crenças religiosas.

Na antiguidade, a divinização do Estado e do poder era comum. O mundo antigo era “um mundo sagrado onde a autoridade do Estado era a manifestação da autoridade divina. A divinização do Imperador, no caso do Império Romano, significava que o Imperador era igual aos deuses, era divino; nele manifestavam-se ao mundo as leis divinas”. Na Grécia antiga, Sócrates foi condenado por ter posto em questão a religião da cidade[1]. O Reino de Israel era uma teocracia, embora com a pureza do Deus da Aliança, e os que exerciam o poder, juízes, reis e sacerdotes, faziam as vezes de Deus, sendo por Ele escolhidos e ungidos.

Curiosamente o cristianismo, surgido em pleno Império Romano, protagoniza a primeira tentativa de dessacralização do poder e do Estado, expressa na frase de Jesus: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc. 12,17). O cristianismo propõe, assim, a dessacralização do Estado e do poder, situando o poder de Deus num espaço de transcendência. A razão do Estado deixa de ser, como no paganismo, a manifestação do divino. É humana, humilde, relativa e falível. Esta atitude vai ditar as relações dos cristãos com o poder político. Para eles há um único Senhor, Jesus Cristo e só a Ele obedecem. Isso merece-lhes a acusação de ateus e de impuros, porque não adoram o Imperador e destabilizam a ordem estabelecida.

  • Esta perspectiva era ousada demais para vingar rapidamente na história: o Edito de Milão, no tempo do Imperador Constantino, no ano de 313, que estabelece a paz do Império com o cristianismo, pode considerar-se o acto de nascimento do Estado laico, que renuncia a penetrar no âmbito reservado da consciência pessoal e das convicções religiosas.
  • Mas, menos de um século depois, com o Edito de Tessalónica, prolonga-se a velha situação. Dessacralizado o Imperador, a Roma religiosa torna-se, de certo modo, a sua herdeira. “Volta a sacralização do Estado, tornado cristão, legitimado pela investidura da Igreja”. Inaugura-se, assim, um período da história e das instituições, baseado nos seguintes elementos: origem sagrada do poder temporal, que para ser legítimo tem de ser confirmado pela entidade religiosa. Esta concepção e legitimação do poder mantém-se até ao momento em que a monarquia absoluta foi posta em questão, e o poder passou a ser legitimado pela vontade popular.
  • A unidade do Estado, que tinha tendência a identificar-se com a sociedade, baseada na unidade de religião, segundo o conhecido princípio, “cujus Regio, eius religio” – a religião do Rei é a religião do Povo. Este princípio, se por um lado protegia a Igreja Católica, por outro lado teve consequências dramáticas na ausência de liberdade religiosa e violação da liberdade de consciência, em que a Igreja se viu envolvida, agudizadas na Europa com a reforma protestante, conhecida como cisma do Ocidente. A inquisição e as guerras de religião foram manifestações graves desse princípio. O Estado confessional, com uma religião de Estado foi uma consequência natural. Por seu lado, a Igreja, que pela sua vocação de serviço e de evangelização, exerceu um papel importante na estruturação das sociedades, organizou-se como sociedade e viu-se envolvida no poder temporal, de certo modo co-responsável dessas violações de liberdade de consciência e liberdade religiosa.
  • É esta situação que a época moderna começa a pôr em questão. O acento vai ser posto na liberdade e na igualdade de todos. A primeira manifestação do culto da liberdade é a liberdade de pensamento, fruto da dignidade da razão, exercida nas filosofias e orgulhosa da ciência nascente, que nunca mais parou de progredir. A modernidade vai afirmar-se, precisamente, por essa autonomia da razão, que rejeita toda a verdade que não tenha nela a sua origem. A pessoa humana compreendida como indivíduo, relativiza progressivamente a importância da comunidade e da dimensão comunitária na busca da verdade e na concepção da liberdade. Uma dimensão individual da verdade e da liberdade pôs em questão a base da verdade da Igreja e da concepção da liberdade como co-responsabilidade comunitária. Não admira que a Igreja visse nesses ventos de modernidade, com que se identificava o progresso, uma ameaça à sua compreensão do homem, da verdade e da comunidade. Seguiram-se as denúncias e as condenações da modernidade, o que fez com que, até hoje, as forças defensoras dos novos ventos, vejam a Igreja como retrógrada, inimiga do progresso e da modernidade.

É neste contexto dialéctico que se vai burilando o conceito de laicidade, aplicado prioritariamente ao Estado, enquanto dessacralização do poder, que deixa de ter a sua legitimação no poder divino, encarnado no poder da Igreja, mas sim no Povo, para quem se defendem valores universais, como a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Ao Estado teocrático segue-se o Estado democrático que tem um longo caminho a percorrer, para afirmar a sua legitimidade e a sua dignidade. Para ser coerente com os princípios da modernidade, tem de defender a igualdade de todos e a dignidade da pessoa humana, a liberdade de consciência e de religião e a liberdade de expressão, princípios inspiradores do Estado democrático.
Pelo que afirmámos, o conceito de laicidade afirmou-se contra a Igreja e foi, tantas vezes, anti-clerical. A laicidade deslizou, facilmente, para o laicismo e pretendeu estender-se a toda a sociedade, progressivamente marcada pelo individualismo, recusando espaço na sociedade para a incidência cultural dos valores religiosos e, sobretudo, evangélicos.
A laicidade passou a fazer parte da definição dos Estados democráticos. “Pôr em questão a laicidade é pôr em perigo o Estado e a liberdade” Se as expressões desta laicidade assustaram a Igreja, a pouco e pouco tomou-se consciência de que a laicização, enquanto dessacralização do Estado e do poder é uma exigência do cristianismo. C. Duquoc escreveu nos tempos do Vaticano II: “Se esta interpretação é válida, é preciso considerar a laicização das sociedades modernas, a neutralidade da ciência, não já com uma degenerescência ou uma apostasia, mas como um progresso objectivo: em todo o caso, como a melhor condição para que o cristianismo manifeste a sua transcendência, isto é, o seu alcance supra-temporal e celeste”.
A Igreja hoje aceita a laicidade do Estado e mesmo onde os católicos são a maioria, ela não exige a confessionalidade do Estado nem conta com o poder estatal para realizar a sua missão. Preocupa-se, isso sim, com os critérios laicistas estendidos a toda a sociedade, mais uma vez identificada com o Estado, em termos de laicidade, sobretudo nos valores culturais que fundamentam a ética colectiva, no respeito pela liberdade de consciência e pela sua presença na cidade, em termos de missão. A Igreja faz parte da sociedade e não pode esconder-se, tem de continuar a lutar pela verdadeira dignidade do homem. O Estado laico situa-se no âmbito dos valores terrenos, que também têm a sua dimensão de transcendência e não deve fechar-se à dimensão transcendente desses valores, veiculados pelas religiões.

A Igreja aceita e respeita a laicidade do Estado, enquanto serviço estruturante da sociedade. Sabe que a área de intervenção do Estado é a ordem temporal do presente histórico, “hoc saeculum”, onde o respeito pela dignidade da pessoa humana, da sua consciência e das expressões legítimas da sua liberdade, a construção da justiça e os caminhos de desenvolvimento e de progresso são valores fundamentais. Mas se a esfera natural dos valores a promover e defender pelo Estado, é a ordem temporal, não pode desconhecer ou atacar valores transcendentes, também eles presentes na dinâmica da sociedade. Por isso, a Igreja nunca aceitará que a laicidade do Estado se transforme em laicismo a impor-se a toda a sociedade, que à partida não se pode definir como laica ou crente, pois isso depende da consciência dos cidadãos.
A Igreja está presente na sociedade, de que faz parte, através de dois caminhos complementares: a sua visibilidade organizativa – entre nós a Igreja é, a seguir ao Estado, a estrutura mais organizada e presente em toda a sociedade – e a presença dos cristãos, com a visão da vida que brota da sua fé, em toda a realidade social. A estrutura organizada da Igreja é ampla, e engloba, para além da sua organização religiosa, as instituições de serviço à sociedade, no campo da intervenção social, da educação, da comunicação e da cultura. Estas concretizam o seu serviço à pessoa humana e à sociedade, pondo em realce a natureza da missão da Igreja na sociedade: servir a pessoa humana e o bem comum. E é por isso que as relações da Igreja com o Estado, na medida que este se assuma como serviço à sociedade, só podem ser de cooperação em prol do bem comum, respeitando as esferas específicas e a natureza de cada Instituição. Esse princípio da cooperação inspira todos os conteúdos da nova Concordata celebrada entre a Santa Sé e o Estado Português. Tudo o que seja dificultar ou mesmo tentar irradicar da sociedade estas estruturas de serviço, protagonizadas pela Igreja, é manifestação de laicismo ultrapassado e retrógrado .
Nós não defendemos um Estado confessional, cultivamos o respeito pela liberdade religiosa, expressão maior da liberdade de consciência. Não pedimos ao Estado que nos proteja, mas que nos reconheça no serviço que prestamos e que integra a nossa missão explicitamente espiritual.

Cardeal D. José Policarpo

2 comentários:

  1. «Não pedimos ao Estado que nos proteja . . . »

    Esta frase só pode ser uma ironia dirigida para quem nunca passou os olhos pela concordata.

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  2. E este comentário só pode vir de quem a tendo lido não compreende patavina do que é um acordo de Relação e Cooperação entre dois ESTADOS INDEPENDENTES E SOBERANOS!!

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