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quarta-feira, dezembro 28, 2005

O MISTÉRIO DO NATAL

Celebram-se a 25 de Dezembro 2005, anos sobre o nascimento de um judeu da Palestina que, na verdade, não se sabe se nasceu a 25 de Dezembro ou sequer há 2005 anos.
Efectivamente, pensa-se que Jesus Cristo tenha nascido entre sete e quatro anos antes da era que ostenta o seu nome, num mês indeterminado. Também não se sabe com exactidão quando foi crucificado, embora se aponte para o período entre os anos 29 e 33 (o que significa, como curiosidade, que a famosa "idade de Cristo" não serão os célebres 33 anos, mas algo mais próximo dos 40).
O facto de ter sido vastamente ignorado no seu tempo de pregador não impediu Jesus Cristo de se tornar numa das mais importantes personalidades de todos os tempos. Não que Jesus se tenha afirmado fundador de um movimento religioso diferente do judaísmo. Mas a sua vida inspirou o maior movimento religioso da história da humanidade, aquele que ainda hoje mais fiéis congrega no mundo.
Jesus Cristo nem sequer se chamou Jesus Cristo, apenas Jesus. "Cristo" foi o título que os seus seguidores lhe apuseram e que é o equivalente grego da palavra hebraica "messias" (o "ungido", ou "ungido de Deus"). A associação histórica dos dois nomes resume, em larga medida, o problema do cristianismo. Jesus nunca se afirmou inequivocamente como "messias" ou "Cristo". Antes da morte e ressurreição, foi um pregador judaico apocalíptico, como tantos outros que existiam na Palestina. Coube aos seus seguidores, depois da ressurreição, começarem a designá-lo assim, bem como "Filho de Deus".
Como nota Bento XVI, a história do Cristo filho de Deus, plenamente divino e humano ao mesmo tempo, a própria materialização de Deus na Terra, desafia a credibilidade, à luz dos actuais critérios de veracidade e verificação. É verdade que todas as religiões o fazem, mas esta talvez mais do que outras. Nas restantes religiões reveladas, por exemplo, Deus dirige-se a Abraão, Moisés e Maomé, mas sem adquirir qualquer forma material. O cristianismo, pelo contrário, obriga a acreditar que Deus, a determinada altura, se apresentou aos humanos enquanto indivíduo concreto, um ponto infinitamente minúsculo no espaço e no tempo da História. O cristianismo obriga a acreditar que um de nós, que viveu há cerca de dois mil anos num pequeno ponto da Terra, era Deus Ele próprio.
Talvez a fraqueza e a força do cristianismo residam nesta mesma inverosimilhança.
  • Fraqueza, porque "Cristo" pode ser facilmente destruído por "Jesus". Será fácil admitirmos que Jesus existiu, mas que não era "Cristo", nem "filho de Deus".
  • Força, porque a fé que permite vencer a inverosimilhança só pode ser uma operação intelectual e espiritual poderosa.

Esta fraqueza e esta força estão presentes na realidade do cristianismo hoje em queda na Europa, sob o assalto dos tais critérios de veracidade, expande-se vigorosamente na Ásia, na África e na América, sendo a religião de cerca de um terço da população mundial.

Mas mesmo na Europa adivinha-se uma porta de regresso que (pelo que vai dizendo) Bento XVI parece querer explorar. É que a inverosimilhança da história de Cristo pouco fica a dever a certas inverosimilhanças opostas. Quem recusa militantemente a existência de Deus, fá-lo por fé. Não porque, de acordo com os critérios de veracidade de que se reivindica, tenha demonstrado que Deus não existe ou que é falsa a sua materialização em Jesus. Tal como o cristão acredita em Cristo, o ateu não acredita em nada transcendente. Mas a fé não o abandonou, e nesse processo ele vai substituindo a inverosimilhança divina por coisas ainda mais inverosímeis. O ateu ocidental, sem o saber, herdou do cristão a noção de salvação e de fim da História (o "Reino de Deus"). Mas incapaz da fé em Deus transfere-a para ídolos, como a ciência, a economia ou a política. Acredita na salvação, mas na terra, e que a ciência, a economia e a política são os instrumentos para a concretizar.

A percepção crescente da incapacidade destes ídolos para construírem o tal "Reino de Deus" tem feito aumentar o número daqueles para quem já nem sequer eles salvam. Daqui nasce a crendice. É no Ocidente super-racionalista que assistimos a uma verdadeira explosão das mais folclóricas superstições, desde a astrologia à psicanálise. Não surpreenderá, por exemplo, vermos um físico nuclear acreditar na reencarnação ou no poder das actividades mediúnicas.

Bento XVI (como já antes João Paulo II) parece acreditar na ideia de Dostoievsky segundo a qual a vida pós-religiosa, sem mistério, seria insuportável. A explosão de formas abastardadas de espiritualidade aponta, justamente, para aí. A Igreja pensará talvez herdar esta sede de mistério, assim reconquistando a Europa. É provável que tenha razão. Afinal, ainda não deixámos de celebrar anualmente o mistério da vida de Jesus, nem de nos render a ele, por muito alheios que a ele sejamos. Por isso, feliz Natal.

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