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domingo, março 05, 2006

Questões da vida são de humanidade e de cidadania

Em entrevista ao «Correio do Vouga», D. Manuel Clemente, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais defende que, em temas como o aborto e a homossexualidade, não há uma oposição concertada à Igreja, mas uma questão de cultura
Correio do Vouga - É prejudicial abordar as questões da vida a partir da fé cristã?
D. Manuel Clemente - Jesus Cristo radicaliza e ilumina as respostas. Mas as perguntas – e as respostas no seu princípio – são da humanidade inteira e desde sempre. Foi com humanidade que nós, a pouco e pouco, fomos descobrindo o que era a vida. Nós acreditamos na Criação e nos seus dinamismos. Por isso, descobrir cada vez mais o que somos como humanidade e o que devemos uns aos outros como cidadãos, isso é um quinhão comum a todos os homens e mulheres à superfície da terra. Não são questões confessionais.
CV - A iluminação cristã, neste debate, é para ser vivida, mas não invocada...
MC - Em Jesus Cristo, vemos uma radicalização da resposta, porque Ele faz da vida – e da vida de todos e de cada um – um absoluto. Ele próprio entrega a sua vida e a partir daí a vida tem um valor infinito. Ora, isso é uma motivação cristã com a qual nós devemos enriquecer não digo tanto o debate, mas a nossa presença. Agora as questões da vida são, antes de mais, questões de humanidade e de cidadania e é nesse terreno que devem ser colocadas.
CV - Considera que há uma “oposição concertada à Igreja”, como dizem algumas pessoas, nas questões da vida e da sexualidade?
MC - Não sei se é de agora. Estamos diante de um debate cultural que tem já pelo menos duzentos anos. É aquilo a que nós chamamos liberalismo. Eu resumo: de há duzentos anos para cá, tudo aquilo que era posto em termos de colectivo, passou a ser posto e cada vez mais em termos de indivíduo. As liberdades são entendidas sobretudo como elas se jogam na vida de cada um e no seu desejo e como possibilidades técnicas. Cada um hoje tem a possibilidade de autoconstruir como nunca teve. Tecnicamente tem essas possibilidades. Ora, ligando individualismo e técnica, hoje em dia parece que basta ser possível fazer-se, transformar-se ou ser outra coisa para que seja legítimo.
CV - Não se trata, então, de uma oposição à Igreja enquanto tal?
MC - Este debate vem da base liberal, que é hoje sobretudo individual e até individualista, e põe a questão em termos que dificilmente aceitam qualquer chamada de atenção para o colectivo, para o interesse geral, para aquilo que a todos diz respeito: “Porque é que eu, como indivíduo, não posso fazer, se eu quero?” O que está em causa é mais amplo do que ser propriamente contra a Igreja. É uma questão de cultura.
CV - A Igreja está disposta a dialogar com todos os sectores da sociedade, mesmo com aqueles que a ela se opõem nestas questões? Ultimamente, a propósito da Gaudium et Spes, tem-se falado muito da nova atitude eclesial perante o mundo... Mas, com quem defende “questões fracturantes”, como o casamento homossexual, o diálogo é difícil ou mesmo impossível...
MC - O que a Gaudium et Spes fez foi sobretudo pôr a Igreja à escuta e na interpretação dos chamados sinais dos tempos. Mas os sinais dos tempos, como o Concílio os encara, são os sinais dos tempos enquanto tempos do Espírito. Ou seja, nós acreditamos que o Espírito de Deus, que é a alma da Criação, a pouco e pouco vai desdobrando as suas potencialidades em cada geração humana. Quando falamos em geração humana, estamos a falar de humanidade. E quando falamos de humanidade, ainda antes de uma posição religiosa, ou seja, numa posição antropológica, encaramo-la naquilo que é a sua base geral: a alteridade masculino/feminino...
CV - Essa alteridade vai sempre existir, mas alguns querem viver como se não existisse...
MC - Hoje, por aquilo que há pouco referi acerca das escolhas de cada indivíduo e das possibilidades técnicas para o conseguir em termos de transformação do seu próprio corpo, a complementaridade masculino/feminino parece estar em causa, mas realmente não está. Qualquer transformação ou possibilidade tecnológica – mudar o sexo ao longo da existência, por exemplo – não contraria aquilo que continua a ser uma evidência até para a própria sobrevivência da humanidade: a alteridade masculino/feminino.Além disso, uma cultura “homo” (e não “hetero”), negando essa alteridade, fecha cada indivíduo em si mesmo e, portanto, dificulta a aceitação da diferença do outro que a própria diferença do sexo induz. Tudo quanto seja fechar-se no “homo”, nesse sentido unissexual, ou atenuar a alteridade como própria da humanidade parece-nos ser, mas em termos pura e simplesmente humanos, para já, um atentado ao crescimento da humanidade. Isto não significa que não se atenda ao percurso individual, ao crescimento de cada um, ao respeito pelas suas etapas. Mas sem desistir deste horizonte de heterossexualidade.
CV - A encíclica de Bento XVI ao falar do “eros” (amor ascendente, amor que procura, tipicamente o amor entre homem e mulher), para além do habitual “ágape” (amor descendente, amor oblativo), falou do amor de uma forma pouco habitual nos documentos oficiais...
MC - As palavras, como o Papa diz, degradaram-se bastante. Perderam muito do seu significado. E o que o Papa faz, até como filósofo que é, é recuperar o sentido original das palavras, para recomeçar a conversa a partir daí. Ele diz mesmo: é preciso antes de mais fazer uma elucidação terminológica. Quando falamos do “eros”, falamos desta apetência que nós temos pelas coisas, pelos outros... É qualquer coisa de espontâneo em nós.
CV - Bento XVI liga “eros” e “ágape”. Não estávamos habituados a isso...
MC - O que o Papa diz – e isso é uma verdade humanística a que o próprio cristianismo dá muita ênfase – é que, se esta apetência se fecha em si própria como satisfação de um apetite, acaba por se degradar. O “eros” deve ser uma abertura para crescer, não apenas no aproveitamento do outro, mas no acolhimento do outro e na oblação ao outro. Deve levar-nos, portanto, a algo que não seja apenas em nosso benefício, mas que nos realize no encontro com o outro e no serviço do outro. Ou seja, transformado em “ágape”. É fundamental que esta apetência que eu tenho pelos outros não se feche, no sentido egoísta do termo, mas que seja uma abertura a encontrar-me com os outros e além de mim.
CV - Surpreendeu-o a encíclica?
MC - Surpreendeu-me no sentido em que não estaria à espera que fosse esse tema, mas uma vez que ele apareceu, acho que não pode ser mais actual. Esta compreensão da humanidade de cada um na oferta e no encontro mais além, onde o outro também se pode encontrar, ai isso é da maior oportunidade para este debate cultural a que me referia atrás.
Fonte: Ecclesia

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