No carnaval, que coisa há-de ser objecto da nossa meditação, senão o riso? – desafia Karl Rahner. Não é a alegria sublime e celeste que é fruto do Espírito Santo, nem também a alegria de que falam, doce e suavemente, «os homens de juízo», e produz efeitos severos e azedos, a euforia do homem inócuo, equânime, mas vitalmente mesquinho. Não. É do riso, do verdadeiro que modula e nos abate e, em certas circunstâncias, nos leva a até às lágrimas. Riso que acompanha os chistes picantes ou insípidos, em que parecemos um pouco cândidos e pueris. Um riso que não é muito profundo e que a gente grave e, presumida da sua dignidade, toma a mal... É desse riso que falamos. Poder-se-á também meditar sobre ele? Sim e muito. É que também as coisas com graça são muito sérias… Será tal riso, como o concebemos, conveniente também ao homem espiritual? …
Seja-nos permitido uma apologia do riso. De repente, o riso dir-nos-á, rindo, coisas muito sérias. No livro mais pessimista da Sagrada Escritura, lemos: «Há um tempo para chorar e um tempo para rir; tempo para lamentar-se e tempo para dançar» (Ecl 3,4). Que tudo tem seu tempo, que o homem não tem nenhum lugar definitivo sobre a terra, nem tampouco um lugar seguro na vida interior do seu coração e do seu espírito. Que a vida significa mudança. Que, no fundo, seria renegar a condição de criatura pretender, como homem desta terra, ter sempre o mesmo estado de alma. Querer fabricar, numa mistura uniforme, a base de todas as virtudes e estados de alma que permanecesse, sempre e em todos os casos, justa. Que seria inumano, estóico, mas não cristão, escapar-se das tormentas da alma, do gozo que nos eleva aos infinitos e da tribulação que nos abate aos abismos, sob um firmamento sempre imutável de impassibilidade e carência de sensibilidade. Eis o sério de que nos fala o riso… Ai de vós! – diz o riso. Se quereis ser agora, neste tempo, o imutável, o eterno, não chegareis a ser senão o morto e o esgotado. Ri-te de mim – diz o riso… Ride algumas vezes, ride sem preocupações. Não temais um riso um pouco tonto, um pouco superficial. Tal superficialidade é mais adequada que uma atormentada melancolia, ditada apenas pela soberba espiritual, soberba que não pode aceitar ser um simples homem. Há verdadeiramente um tempo para rir. É lícito, pois, que aconteça, pois que também esse tempo foi criado por Deus. Eu, o riso, esse desvario pueril que dá cambalhotas e ri até às lágrimas, eu, fui criado por Deus… Deixai-me entrar na vossa vida. Não acontecerá nada, pois que tereis fartas ocasiões para chorar e entristecer-vos. Ride, pois esse riso é uma confissão de que sois homens. Confissão que, em si mesma, é o começo da confissão de Deus. Pois como é possível um homem confessar Deus, a não ser confessando que, na sua vida e pela sua vida, não é Deus, mas uma criatura que tem os seus tempos, dos quais um não é o outro? O riso é um louvor a Deus porque concede que os homens sejam homens.
Mas este riso é algo mais… Falamos de um riso que se desprende e que brota de um coração infantil e sereno. Só pode acontecer em quem não é «descrente», mas um daqueles que, como Cristo (He 4, 15: cf 1 Pe 3, 8), têm, por amor a todos e a cada um em particular, «simpatia» livre, aberta que permite adoptar e ver tudo como é: o grande, grande; o pequeno, pequeno; o sério, seriamente; o jocoso, alegremente… Contudo, só é capaz disso quem não está cheio de si mesmo, mas é livre e, como Cristo, se pode «compadecer» com todos. Aquele que sente, por todos e cada um, essa secreta simpatia na qual e perante a qual cada um se consegue expressar individualmente. Isto possui apenas aquele que ama. E assim o rir-se é sinal de amor…
Todavia este riso inocente dos filhos de Deus é algo mais… No livro da Sabedoria (4, 18), se diz dos maus que o Senhor rir-se-á deles. Deus ri o riso do leviano, do convencido, do insolente, o riso da soberania divina sobre toda a miserável confusão de uma história do mundo sombria de dor e vulgar. Deus ri. O nosso Deus ri. Ri descontraído. Poder-se-á dizer matreiro e tranquilo. Ri compassivo e consciente, como que se alegrando do espectáculo transbordante de lágrimas desta terra. Pode fazê-lo, pois que Ele também chorou connosco, triste até à morte e sentindo-se desamparado por Deus…
Contudo, este riso inocente do coração amante é ainda algo mais. Nas bem-aventuranças de S. Lucas (6, 21) está escrito: Bem-aventurados os que chorais agora por que haveis de rir. Certamente que é um riso prometido aos que choram, que levam a cruz, que são odiados e perseguidos por causa do Filho do homem. Porém é-lhes prometido o riso como prémio… Um rir, não apenas uma suave felicidade, um júbilo ou uma alegria que faça brotar do coração lágrimas de satisfação exultante. Tudo isto também. Mas também o riso. Não só serão enxugadas as lágrimas e o nosso pobre coração será inundado até à embriaguez de uma grande alegria que nos leva a crer na alegria eterna. Não, riremos. Riremos como Aquele que mora nos céus, riremos como se prediz no salmo 52 (v. 8) para o justo.
(de Karl Rhaner, Kleines Kirchenjahr, 1954 – transcrito na Voz Portucalense de 23/02/2011)
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